segunda-feira, 30 de abril de 2012

Mulheres e homens: tudo igual, tudo diferente

Mulheres e homens: tudo igual, tudo diferente
Reinaldo Bulgarelli, 30 de abril de 2012

O IBGE divulgou no dia 27 de abril mais um conjunto de dados sobre o Censo 2010. Boas notícias! “Escolaridade e rendimento aumentam e cai mortalidade infantil”, diz logo de cara a divulgação no site do IBGE.

Um dos dados chama minha atenção: diminuiu a diferença salarial entre homens e mulheres, o que também foi assunto do Bom Dia Brasil de hoje, dia 30 de abril.

Em 2000, as mulheres recebiam 67,7% do salário dos homens na mesma função. Não era em outra função, mas na mesma! Em 2010 esse percentual baixou para 73,8% do que ganhavam os homens.

É um dado para ser comemorado porque estamos melhorando e não piorando. Comemoremos a melhoria. O que é preocupante é o ritmo. Quanto tempo ainda vai levar para que mulheres e homens tenham rendimentos iguais para a mesma função? Podemos esperar o próximo Censo 2020 com otimismo, mas já teremos alcançado a igualdade em termos de rendimento? É algo tão básico e mesmo assim tema para alguém que, como eu, trabalha com valorização da diversidade nas empresas.

Para empregadores, a notícia deveria gerar, no mínimo, alguma inquietação. Já vi empresários, donos de empresas que, diante dos dados do IBGE, pediram ao RH para levantar se havia essa diferença em sua organização.

Alguns divulgam o dado alarmados ao descobrir que, mesmo sem uma política para isso, haviam diferenças entre os salários. Outros somem com o dado e escondem bem escondido, mesmo quando arregaçam as mangas para corrigir esta situação vergonhosa.

Já vi empresas em que ninguém se preocupa com o dado e nem mesmo tem a curiosidade de saber se ali há alguma disparidade entre homens e mulheres. Quando questionados, a preguiça já tem resposta pronta: aqui tratamos todos iguais e ponto. Já vi também empresas onde a diferença de salário é fruto de decisão e as ordens caminham escondidas por dentro das gavetas de gestores e técnicos coniventes. Bom sinal que tenham alguma vergonha e uma pena que somente depois de deixar a empresa é que comentam o fato.

Como a história desta diminuição entre os salários de homens e mulheres é realizada por gente que não se conforma à chamada realidade, vamos olhar o que acontece nas empresas sérias.

O problema são as médias, alegam alguns, e com certa razão. Quando se olha a empresa de perto, com lupa, os dados revelam algumas coisas:

Há lugares em que, mesmo sem uma ordem por escrito dos donos ou dirigentes, paga-se salário menor para as mulheres nas mesmas funções que os homens. Dá-se um jeito de pagar menos com base em funções iguais, mas com um conjunto de níveis, grades, enfim, mecanismos que deveriam estar a serviço do mérito e estão a serviço do machismo.

Quando a empresa se dá conta que o machismo está contaminando os processos, passam a rever as ferramentas utilizadas e a combater o machismo. Uma coisa tem que ser acompanhada da outra para dar resultado. Há gestores que justificam a preferência por homens nas avaliações porque eles são pais de família e porque as mulheres engravidam ou têm esse “defeito” de potencialmente virem a engravidar.

É preciso que alguém monitore os dados para identificar se há essa política machista produzindo desigualdade nas empresas. Se um gestor, ao final de um período, apresenta dados com prevalência de avaliações positivas para os homens, pode ser coincidência e pode não ser. Em geral, tudo é tratado como coincidência, um dos nomes do machismo.

Empresas que monitoram os dados, fazem recorte por gênero e pedem justificativas para os gestores sobre suas avaliações de desempenho, tendem a ter menor disparidade. Um gesto tão simples e que deveria ser tão corriqueiro no ambiente empresarial pode produzir resultados excelentes. Só de perguntar, mostrar que se está monitorando e fazendo recortes, inibe práticas machistas, faz pensar, demonstra na prática o que a empresa diz em textos bonitos sobre compromisso com ética, mérito etc.

Há empresas que vão além e percebem que há dois outros fatores prejudicando seu desempenho quanto à atração e desenvolvimento na carreira de talentos, como costumam dizer. Sim, não é apenas a mulher a prejudicada, mas toda a organização. Criar disparidade, injustiças, gera também um ambiente de pouca confiança, perda de bons profissionais, barreiras para o crescimento dos negócios, entre outros aspectos. E qual empresa pode se dar ao luxo de perder bons profissionais ou de nem sequer permitir que desenvolvam seu potencial?

Um dos fatores está relacionado à distribuição sexual do trabalho, com atividades tidas como masculinas e outras como femininas. O machismo, que habita todas as cabeças e não apenas a dos homens, faz com que diferenças culturais sejam assumidas como naturais. “É natural que homens exerçam atividades que exige força”, dizem alguns, alimentando a mesma lógica que defende que homens nasceram para mandar e mulheres para obedecer.

Há empresas que enfrentam essa realidade, não se conformam, discutindo a questão com a comunidade interna e externa, com as organizações de formação de profissionais, ocupando espaços na mídia da cidade ou trabalhando essas “verdades” na comunicação interna. Uma empresa pode fazer a diferença na comunidade quando realiza diálogos sobre questões de gênero e leva a pensar sobre o porquê de mulheres terem baixa presença em atividades ditas masculinas. Há empresas que incentivam cursos de engenharia para mulheres, cursos na área de tecnologia e até mesmo utilizam seu investimento social para trabalhar essas questões.

Outro fator está relacionado à distribuição sexual das atividades reprodutivas, estas que garantem a vida, seja pela capacidade de gerar filhos ou de cuidar da roupa, da alimentação, da casa, dos parentes, enfim, da rotina que faz parte da vida de todos. Segundo o IBGE, homens ainda dedicam pouquíssimo tempo para estas atividades, deixando as mulheres sobrecarregadas, até mesmo quando há uma empregada doméstica na casa. Cabe à mulher o gerenciamento de suas atividades, assim como cabe a ela cuidar dos parentes idosos, das crianças, leva-las ao médico, fazer a lista de compras da semana etc.

O que a empresa pode fazer? Não atrapalhar já é uma grande coisa! Há empresas que se conformam com essa realidade e pensam em benefícios adaptados à mulher sobrecarregada. Há empresas que distribuem benefícios pensando em educar os homens para que também assumam responsabilidades nas chamadas atividades reprodutivas. Como disse aqui em outro artigo, homens e mulheres como cuidadores e provedores, sem distinção, é sinal de que a sociedade caminha para a equidade.

Mas, e as diferenças “naturais” que existem entre homens e mulheres? O machismo e suas práticas de discriminação ainda fazem tanto barulho que não deixam o discurso dos benefícios da diversidade de gênero ser ouvido. Um dia chegaremos lá também.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Egressos, trabalho e renda

Foto de Bruno Fontoura/SEMDET
O que as empresas podem fazer pelo preso?
Reinaldo Bulgarelli, 23 de abril de 2012

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho de São Paulo realizou ontem, dia 23 de abril, mais um evento que discute diversidade, renda e trabalho na cidade de São Paulo.

Os eventos contam com o apoio técnico da Txai que contribui voluntariamente com a equipe da SEMDET na organização e realização dos seminários. Os seminários são de responsabilidade de Fernando Cerqueira, coordenador do trabalho, sempre presente e atuante, disposto a discutir temas que não são nada fáceis.  

Nas palavras do novo secretário da SEMDET, José Alexandre Sanches, os seminários contribuem para a elaboração de planos de ação que acolham a nova realidade do país no qual temos baixo desemprego e bons índices de desenvolvimento econômico.

Já foram temas dos seminários a questão da mulher, da pessoa com deficiência, dos aprendizes, do negro, dos homossexuais e o de ontem teve como tema “Oportunidade de Trabalho, Emprego e Renda para Egressos do Sistema Prisional na Cidade de São Paulo”.

O formato dos eventos é muito simples, mas muito produtivo. A abertura conta com a presença das autoridades e organizadores do seminário, apresentando as boas vindas, a visão da SEMDET sobre o tema, as possibilidades de enfrentamento prático dos problemas e, em geral, as resoluções que já podem ser tomadas de imediato. Em seguida, um especialista aborda o tema, contextualizando, oferecendo dados e sua proposta de enfrentamento da questão. Convidamos também um representante do poder público que represente o que o governo ver realizando na área, não apenas em sua organização.

O intervalo de trinta minutos, além do café de boas vindas antes do início, favorece a interação entre todos os participantes, momento de boas articulações e contatos da plateia constituída por representantes de órgãos públicos, empresas privadas de todos os portes, estudiosos do tema, membros de organizações não governamentais, sindicatos, ativistas, entre outros. Por fim, realiza-se uma mesa em formato de talkshow com depoimentos de representantes do segmento em questão, empresas, movimentos sociais, aquecendo e abrindo o debate com essa plateia sempre rica em termos de representatividade e experiências no tema abordado.

No evento sobre egressos do sistema prisional, contamos com a participação do professor José Pastore, um dos maiores especialistas do país no tema das relações do trabalho. Como ele mesmo disse, por razões pessoais e profissionais tem se dedicado ao tema dos presos e egressos do sistema prisional. Enquanto muitos que enfrentam a violência em suas vidas preferem apenas pedir mais ação da polícia, este grande mestre tem colocado todo seu conhecimento a serviço da busca de soluções concretas, estudando, pesquisando, dialogando com presos e profissionais do setor. Seu livro “Trabalho para Ex-Infratores”, pela Editora Saraiva, publicado em 2011, bem como a abertura que fez ao Manual “O que as Empresas Podem Fazer pela Reabilitação do Preso”, do Instituto Ethos, de 2001, são exemplos desta trajetória e dos anos de contribuição ao tema.

Apesar do braço quebrado, professor José Pastore compareceu ao evento e nos fez várias provocações, alinhadas com o objetivo do seminário de enfrentar temas que a sociedade parece ter muita dificuldade para discutir e propor soluções. Ele questionou, por exemplo, porque tem sido tão difícil para um país que gera 2 milhões de empregos por ano incluir no trabalho formal cerca de 30 mil egressos.

Mais uma vez nos deparamos com o tema do preconceito que, a cada segmento estudado nestes seminários da SEMDET, mostra suas diferentes faces. Eu as tenho chamado de “ideologias da discriminação”. No caso dos egressos, enfrentam o estigma de ter praticado um ato criminoso no passado e que acaba sendo integrado na pessoa como se fosse uma coisa só.  Mesmo cumprindo a pena, o sujeito ganha o estigma de criminoso, como se toda sua vida e suas perspectivas atuais e futuras pudessem ser reduzidas definitivamente a esta questão. Desconfiança, medo da pessoa, receio de que pratique contra a empresa o mesmo ato que o levou à prisão são elementos deste preconceito que afasta o egresso de uma oportunidade. É evidente que essa exclusão gera um circulo vicioso e que precisamos de medidas para construir um circulo virtuoso que favoreça o egresso, as organizações e toda a sociedade. Quanto custa deixar um egresso entregue à própria sorte? Qual o investimento necessário para a inclusão?

No painel que realizamos no evento estava o Sergio Ricardo, egresso que passou, segundo ele, vinte e quatro anos no sistema prisional. Seu depoimento foi muito positivo, otimista, dizendo que não desistia apesar dos pesares. E os pesares são justamente esse circulo vicioso. Citou a assistente social Sonia, do CAT – Centro de Apoio ao Trabalho, da SEMDET, que representou, por meio dos elogios que fez a ela, todas as Sonias que sabem como fazer a diferença na vida de alguém. Mas, sua história como egresso está pendurada no circulo vicioso. Ele tem toda disposição do mundo para a nova vida e, como diz o professor José Pastore, aprendeu a gostar do trabalho, faltando agora um emprego formal, de carteira assinada, uma vez que está numa cooperativa que o chama apenas quando tem serviço.

Sergio me fez lembrar dos muitos e muitos jovens com os quais tralhei quando era educador social de rua. Às vezes, achavamos nós, não tínhamos nada a oferecer para quem ganhava a vida por meio de práticas criminosas, mas era um engano. Não é o quanto se vai ganhar a mais o elemento que pesa nesta escolha, mas a oportunidade e o que ela significa de perspectiva, um projeto de vida que se reinventa e que vai além de uma simples inserção no mercado de trabalho, por exemplo. Sergio já fez sua escolha, mesmo sem encontrar uma oportunidade à altura do que pode fazer e do tamanho dos sonhos que traz consigo.

O painel contou, ainda, com Antonio Hermes, que também já tinha passado por prisões e está liderando hoje uma organização, a NUA – Nova União e Arte. Ele encontra neste trabalho uma maneira de expressar seu desejo de uma vida nova, mas também de contribuir com a comunidade e de dizer sua palavra sobre as causas e consequências de uma sociedade indiferente e insensível para com alguns de seus cidadãos.

Carla Vieira, da empregadora Singalter, contou sua experiência ao lidar com o desafio de contratar egressos. A empresa, pelo que entendi, não realiza uma “ação social” para favorecer egressos, mas tem por postura a não discriminação. Nada contra as ações sociais que favorecem segmentos em situação de vulnerabilidade, desvantagem e exclusão, tão necessárias neste caso, mas é muito bom observar que há estágios até mais avançados com empresas que simplesmente não aceitam discriminar. E, como lembrou o secretário Sanches, quem pode ainda criar barreiras baseadas em preconceito quando os empregadores se queixam tanto da falta de profissionais? No relato de Carla também ficou evidente a não conivência com clientes que rejeitam egressos. Uma lição para todos nós que a ouvimos relatar com simplicidade e firmeza a maneira como a Singalter lida com essas situações. Para servir de referência a todos, Carla disse que os egressos contratos por eles têm desempenho igual ou até melhor do que os que não são egressos. É a paixão pela oportunidade!

Por fim, Mariana Parra, coordenadora de projetos de políticas públicas do Instituto Ethos, apresentou a publicação “O que as empresas podem fazer pela reabilitação dos presos”, citada acima (disponível no site -  http://www.ethos.org.br/_Uniethos/Documents/manual_preso_internet.pdf). Ela, que representou uma organização do movimento de responsabilidade social empresarial, trouxe a perspectiva das práticas sustentáveis e convidou as empresas a refletir sobre o imenso custo que significa a indiferença, assim como o papel importante das empresas como empregadores diretos ou indiretos, por meio de um trabalho bem feito na sua cadeia de suprimentos, por exemplo. A publicação citada é de novembro de 2001 e poderá ser atualizada, mas foi uma contribuição importante na época e pode ter ajudado, como todos concordaram, nos avanços que estamos vivenciando neste tema.

Não quisemos focar no evento a questão importante das condições em que estão os presos atualmente, mas nas oportunidades que uma articulação entre os diferentes setores da sociedade pode produzir para construirmos um circulo virtuoso que dê conta dos desafios apontados pelo secretário José Alexandre Sanches e pelo professor José Pastore. Uma economia como a brasileira não pode continuar fechando as portas para egressos, muito menos deixar passar a oportunidade, em tempos do chamado pleno emprego, para enfrentarmos nossos preconceitos, realizar aprendizados importantes no campo da promoção dos direitos humanos e das organizações inclusivas. Se há um problema no sistema prisional, não justifica, apesar de dificultar, que continuemos criando problemas para os egressos.

Muitas questões surgiram durante o seminário tratando de recortes que são importantes neste tema, como o fato da vida no crime e o próprio sistema prisional produzirem o distanciamento entre o preso e sua família. Foi citada a questão dos estrangeiros, homens e mulheres, com suas especificidades, cumprindo pena num país onde não possuem familiares e uma estrutura que ofereça apoio também na fase de saída da prisão. O machismo foi lembrado por meio do dado de que os homens recebem mais visitas do que as mulheres. Elas, na condição de presas, são abandonadas pelos seus parceiros e familiares, talvez porque eram o pilar de sustentação de uma família que desmorona com a prisão da mulher.

Lembrei também a questão dos homossexuais, dos travestis, a questão racial permeando todo esse círculo vicioso, tanto na produção das condições para o crime, o sistema de justiça, aprisionamento e vida de egresso em uma sociedade que discrimina os negros. Mas, no período desta manhã em que houve muitos momentos emocionantes e, com certeza, muita esperança “de que a humanidade tem jeito”, como comentou um participante, nem tudo poderia mesmo ser aprofundado.

A SEMDET deve organizar posteriormente uma publicação com os resultados destes seminários (é o meu desejo!), além de publicar na página do órgão uma notícia sobre este evento específico. Hugo Duarte, presidente da comissão municipal de emprego e responsável pelo São Paulo Confia, falou em uma linha especial de crédito para egressos, por exemplo. Quantas outras iniciativas institucionais ou pessoais podem sair deste encontro?

Creio ser importante reproduzir aqui a mensagem que quase todos os convidados passaram de que é importante não rotular, não duplicar a pena com estigmas e de que é possível, com trabalho sério, fortalecer o círculo virtuoso que inclui o egresso e que considera sua história sem ficar fixado no passado e no ato criminoso. O mundo empresarial tem conhecimentos, expertises, recursos e energia suficiente para entrar neste tema e fazer a diferença, como demonstram exemplos já existentes. Não são suficientes, mas demonstram que há muito mais do que apenas indiferença e exclusão no caminho dos presos e egressos. E você, já pensou neste assunto? O que pode fazer para que trinta mil egressos por ano não fiquem entregues à própria sorte ou ao convite do quarto setor - o do crime organizado?

O importante é a diversidade de ideias?


A pedidos, publico aqui na íntegra o meu artigo que saiu no boletim do Instituto Ethos e no Portal do Geledés.

O importante é a diversidade de ideias?
Por Reinaldo Bulgarelli*
Nossas organizações empresariais já não são por demais brancas, branqueadas e branquejantes, masculinas, masculinizadas e masculinizantes, heteronormativas, "davincianas"1 quanto à imagem do homem perfeito no círculo nada plural da existência?

Se alguém duvida, basta ler jornais ou, com um pouco mais de interesse, procurar a pesquisa Perfil Social, Racial e de Gênero das 500 Maiores Empresas no Brasil e Suas Afirmativas, do Instituto Ethos e do Ibope. Segundo o último estudo, de 2007, tínhamos 96,5% de brancos, 89,5% de homens e 99,6% de pessoas sem deficiência no quadro executivo das empresas. É um lugar no qual são tomadas decisões importantes sobre as atividades da empresa num país plural, diverso e em rápido e profundo processo de mudança.

Eduardo Barros, do Info Money, escreveu que “se você é homem, de cor branca e de meia-idade, com diploma de curso superior e sem deficiência física alguma, saiba que está muito mais próximo de conquistar um cargo de direção numa grande empresa brasileira do que qualquer outra pessoa que não se enquadre nesse perfil." Ele não está errado. A conversa sobre mérito, portanto, é mentirosa ou é malfeita. Quero acreditar na segunda hipótese.

Se essa falta de diversidade não é problema para alguns, para muitos significa atraso, incoerência com os próprios valores, prejuízo para as empresas no seu diálogo com o presente e com o futuro, com os clientes atuais e com aqueles que se espera atrair numa sociedade plural e ao mesmo tempo com muitos problemas para aceitar e valorizar sua diversidade.

"O mais importante é a diversidade de ideias" é uma frase repetida com ares de seriedade e quer, talvez, demonstrar compromisso com valores mais profundos, preocupação com o que é realmente importante: a alma. Por que separar o que nasceu junto, corpo e alma? Quem diz esse tipo de coisa se alimenta, passeia pelas ruas, assiste TV ou apenas paira em etéreo lugar?

Eu costumo chamar essa falsa valorização da diversidade de "almificação dos viventes". E mesmo essa proposta de focar nas almas é engraçada, porque não se trata de almas com vivências inteligíveis, mas "almas cósmicas", "supraterrestres", sem história, sem vida, sem nada a dizer.

Numa empresa qualquer, se alguém cruzar nos corredores com alguma ideia flutuando fora de um corpo, melhor chamar a segurança, acionar o alarme e pedir para evacuarem o prédio. Ideias importantes ou as ideias que importam não andam por aí descoladas de um corpo, de um alguém que as concebeu. Seria uma ideia ruim, ingrata ou delinquente, ao andar por aí sem seu corpo.

Criticamos Taylor e todos que querem reduzir os trabalhadores, mesmo os moderníssimos trabalhadores da era do conhecimento, a uma mera "mão de obra", mas essa coisa de dizer que a diversidade importante é a das ideias não é nada diferente. É como se dissessem: "O que importa são suas ideias e não você. Pendure todo o resto lá fora e venha já trabalhar, sem trazer sua vida, seu corpo, sua história, suas concretudes, as vivências que o corpo lhe deu, suas dores, suas alegrias, sua sexualidade, suas crenças, suas contribuições, suas expectativas ou visões de mundo. A tarefa precisa ser realizada e para isso queremos apenas sua alma a serviço do nosso padrão". Deve ser por isso que falta vida em tantas organizações. A vida como ela é, com qualidades e defeitos, fica do lado de fora.

Há uma empresa na qual grande parte dos negros raspam o cabelo. Eu fico feliz ao ver que, pelo menos, nessa empresa há tantos negros a ponto de serem notados. Por outro lado, fico sempre me perguntando quem foi que mandou os negros rasparem a cabeça. É o racismo impregnado nas paredes. Será que os gestores, mandantes, coniventes ou omissos com o fato, não percebem que junto com os cabelos vão embora as ideias? Ideias e cabelos vivem juntos. Reprimem os cabelos, desprezam o que é próprio da pessoa e eliminam do cenário uma característica, mas também estão desprezando, eliminando uma possibilidade, uma perspectiva, enfim, a riqueza da diversidade.

Quem deixa de contratar alguém por alguma característica dessas que não lembram uma alma incolor, insípida, amorfa, inodora, indelével, invisível, está também deixando de lado um cliente, um fornecedor, uma comunidade, uma possibilidade de ter sucesso. Alguém em sã consciência pode deixar de lado uma possibilidade?

Toda essa "almificação dos viventes" é coisa de gente que também não deve gostar muito da frase do poeta Paul Valéry: "O que há de mais profundo é a pele". É na pele que mora a alma. Se não respeitamos nem a pele, quanto mais a alma! É pela pele que somos hierarquizados, jogados, muitas vezes sem mérito algum, no topo das organizações ou, sem reconhecer qualidades na diferença, somos jogados na rua, excluídos ou assassinados.

Por meio de nossas características concretas, corpóreas, como ser branco ou negro, homem ou mulher, alto ou baixo, gordo ou magro, ter 20 ou 50 anos, ser hétero ou gay, possuir ou não deficiência, é que entramos em contato com o mundo e desenvolvemos nossa essência, nossa identidade, trocando, interagindo e não pairando no espaço, longe do nosso tempo e lugar.

No mundo dos negócios, tão objetivo, concreto, por vezes cartesiano demais, a frase sobre as "ideias que importam" soa estranha, mas é uma face da ineficiência e a demonstração cabal de que as ideologias racistas, machistas, homofóbicas, entre outras, transcendem a lógica do lucro.

Nada importa mais do que manter as coisas como estão, o mundo "chique" intocável, a "normalidade" reinante, mesmo que para isso tenhamos que perder dinheiro por desprezar parcelas imensas da população que, aliás, são o tal mercado interno que hoje nos salva das crises internacionais.

As empresas não pairam acima ou isoladas das ideologias. Algumas ideologias são mais poderosas que tudo, mesmo afastando as empresas da efetividade, da adição de valor aos acionistas ou ao conjunto de stakeholders, na versão mais sustentável e socialmente responsável.

"A diversidade de ideias é a mais importante" é frase de gente que está colocando a empresa em situação de alto risco. Leve as ideias "almificadas" para o tribunal quando for pagar multa por racismo, por exemplo, para ver se o juiz aceita essa argumentação com os números da demografia interna que o mercado de trabalho apresenta.Talvez até funcione, mas gente séria não cai nessa conversa.

E a chamada lei de cotas para contratação de pessoas com deficiência? Quando será cumprida, se o que importa são as ideias? Quem defende essa proposta irá ajudar a empresa a pagar a multa? Não sentem vergonha de desumanizar o que é humano? Tão poucas mulheres em cargos de liderança! Vamos culpá-las também e dizer que não querem trabalhar, apenas cuidar da própria vida? O mais importante são as ideias... Dos homens, claro!

Por fim, quem diz que o mais importante são as ideias, e não essa história de ficar monitorando a demografia interna em relação a raça, cor, gênero e outras "bobagens", deveria rever seus conceitos. Quer dizer que há empresas contratando pessoas com deficiência, mulheres, negros, homossexuais, pessoas com mais de 45 anos, entre outros, que não têm ideias? Não é estranho? Ou essa afirmação quer dizer que só os homens brancos é que têm ideias ou que só eles têm as ideias que importam?

Se a diversidade de ideias é mais importante do que a outra, a que trata de incluir gente inteira e não pela metade, cindida entre corpo e alma, gente e cultura, porque é que não estão ouvindo suas ideias? Ou será que estão contratando todas essas pessoas e não estão ouvindo suas ideias?! Isso é desperdício, totalmente contraproducente e indicaria que nossas equipes precisam urgentemente de uma boa capacitação, porque estão jogando dinheiro pela janela.

Diversidade cultural é diversidade humana. Não há cultura sem gente e nem gente sem cultura. Nada que afeta a vida dos homens e das mulheres, incluindo o machismo, está fora do mundo ou separado da diversidade cultural. Se diversidade cultural é termo utilizado para falar de outras culturas, sobretudo de outros países – o que é mais chique do que ficar preocupado com o número de mulheres na liderança –, cabe lembrar que há homens ou mulheres nos outros países. Sim!

Diversidade cultural ou diversidade de ideias são na verdade novas maneiras de dizer velhas coisas: "Estamos pouco ligando se você precisa de rampas para chegar à empresa, porque quem nos interessa é quem consegue subir as imensas escadarias que filtram tudo que consideramos ruim por não se parecer conosco e com o que achamos bom".

Essa cisão entre pessoas e ideias, diferente da ironia que fiz neste artigo, é expressão de cinismo. Não é coisa que pode fazer parte do ideário de nenhuma empresa, muito menos das comprometidas com o novo, com a inovação, com a superação de desafios.

Mais do que nunca, as empresas modernas precisam de pessoas inteiras, íntegras, para encontrarem conjuntamente, cooperando umas com as outras, as soluções para os problemas que suas próprias escolhas lhes trouxeram. Como garantir sucesso ouvindo apenas algumas ideias, e não todas as ideias? Quem está "sobrando" nessa conversa anacrônica, possui ideias que, somadas às outras, podem fazer toda a diferença. Ouça o que as chamadas "minorias" têm a dizer e enriqueça sua vida e sua empresa.

* Reinaldo Bulgarelli é sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação, organização que assessora empresas em sustentabilidade e responsabilidade social empresarial.

________________________________________
1 Bulgarelli usa o termo “davincismo” como sinônimo de discriminação à pessoa com deficiência. É que Leonardo da Vinci cristalizou a imagem do "homem perfeito" (o Homem Vitruviano) em muitas mentes. Mas, para o autor, há muitas possibilidades de ser humano. A deficiência é uma delas.
________________________________________

Artigo publicado no boletim do Instituto Ethos em junho de 2010


sábado, 7 de abril de 2012

A questão do preso e a responsabilidade social empresarial

1o Seminário "Oportunidades de trabalho, emprego e renda para egressos do sistema prisional na cidadade de São Paulo"
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho - SEMDET, vai realizar no próximo dia 23 de abril, no CAT Luz, mais um importante seminário sobre diversidade, responsabilidade social empresarial, os diferentes segmentos da população e sua interface com os desafios de emprego e renda.

Desta vez vamos tratar da questão do preso, dos que já cumpriram pena e que podem encontrar na geração de renda e no emprego alternativas para seguir em frente com a vida. Sobre isso é que falei no meu segundo artigo para o blog do Guilherme Bara. Depois do evento, falaremos mais sobre o tema.

Jornal Cidadania, abril de 2012

A Fundação Bunge possui uma publicação muito bacana com temas relevantes e ótimas contribuições para a cidadania e o desenvolvimento sustentável. É o Jornal Cidadania e neste mês ele traz um balanço sobre os Objetivos do Milênio na matéria de capa. Na contra-capa está uma entrevista comigo falando de valorização da diversidade: "Fazer a Diferença".

Link: http://www.fundacaobunge.org.br/jornal-cidadania/materia.php?id=9806&/como_fazer_a_diferenca