sábado, 18 de agosto de 2012

É proibido dizer que doeu, mesmo quando está doendo e muito!

Reinaldo Bulgarelli
12 de agosto de 2012

O machismo produz impactos horríveis na vida das mulheres executivas. Elas são boicotadas, traídas, deixadas para trás, têm que escutar bobagens sobre as mulheres ou sobre elas mesmas, mas se recusam a assumir o lugar de vítimas.
Talvez façam isso por uma altivez suicida, ingenuidade ou por efeito do próprio machismo assimilado com facilidade por muitas mulheres, afinal, como sempre gosto de lembrar, o machismo é ideologia que anda por todas as cabeças e não apenas pela dos homens.
Também há a pressão da sociedade atual dizendo que ninguém no mundo das empresas e dos empreendedores pode parecer fraco, frágil, vulnerável. É proibido demonstrar dúvida, dores, medos, se arrepender de algo ou parecer que sentiu a paulada que realmente aconteceu.
Você pode sofrer traições, humilhações, boicotes, assédios, discriminações descaradas, mas é mais digno, nesta lógica esquisita dos tempos atuais, fingir que nada acontece e seguir em frente com um sorriso estampado. “Ops, passou um caminhão em cima de mim, mas não foi nada e já estou de pé novamente.”
É uma cultura estranha. Elogia-se exageradamente quem luta contra uma doença, como se a morte não fosse uma possibilidade da vida. Assumir a derrota é inaceitável e o bonito é lutar sempre até o fim. Ou fingir que está tudo bem, mesmo quando não está. A felicidade é uma obrigação e ela precisa ser ostentada o tempo todo, pegando mal demonstrar tristeza, depressão, descontentamento.
Os fortes não choram, não reclamam, não desistem jamais e, aí está o problema, podem também não querer lutar por seus direitos, denunciar injustiças, dizer que algo não vai bem. Quando se é minoria, no sentido político, de não ter voz nem vez, é honroso fingir que as barreiras não existem e demonstrar coragem ou que se é igual a todo mundo.
Mas a desigualdade está dada, a injustiça está presente. Mesmo assim, a qualquer preço, é importante dizer que se é igual a todos e que não se quer tratamento diferenciado, de coitadinho. Jamais, dizem, pareça ser diferente. O aceitável é ser igual. E lá se foi a possibilidade de adição de valor.
Somos diferentes uns dos outros e do padrão dominante. Por isso mesmo alguns de nós enfrentam barreiras e estão em situação de desigualdade ou de injustiça. Mesmo assim, o correto é não se fazer de vítima, mesmo sendo, mesmo enfrentando crueldades. O bacana é dizer que se é igual, que quer tratamento igual, que a diferença não importa.
Em país de baixa participação, com muito discurso sobre cidadania e pouca prática, todos falam em respeito aos direitos, mas quase ninguém fala das diferenças, das crueldades da discriminação e das dores da injustiça. É feio assumir-se vítima delas. Bonito é ser igual, se esforçar e, assim, vencer.
Temos quase 90% de homens em cargos executivos nas 500 maiores empresas do Brasil e isso quer dizer que as mulheres não se esforçam e por isso não chegam lá? É isso que escuto e é isso que precisamos enfrentar para mudar a realidade.
Não tem coisa mais triste que alguém se fazendo de coitadinho ou querendo ficar no lugar subalternizado que lhe foi imposto, assumindo que não nasceu mesmo para lutar e muito menos para vencer. Mas também acho que não tem nada mais horrível do que alguém querendo esconder o golpe duro que levou ou as feridas do tombo.
Não é humano e nem postura cidadã. Muito menos contribui para mudar as coisas para melhor nas organizações. Sem assumir a realidade, vivendo de fantasias, como construir organizações melhores em um mundo melhor, coisa que todo mundo diz querer?
Para as jovens mulheres que entram no mercado de trabalho por meio da legislação da aprendizagem eu sempre digo para prestarem atenção no fato de serem mulheres. Parece esquisito ter que dizer isso, mas é que elas estão dopadas pela onda individualista que ensina que o esforço é trará resultados.
Alerto para o fato de que estão entrando em território masculino, masculinizado e masculinizante. O mesmo vale para os gays, os negros, os jovens com deficiência, sem esquecer outras situações e o próprio fato de que a juventude é desprezada neste mundo adulto, adultocêntrico e adultizante, que só vê valor no que é “maduro”, experiente, pronto.
O alerta não é para construírem trincheiras, empunharem armas contra inimigos, ficarem com pé atrás, mas para assumirem o que são num mundo que não gosta do que são, preparar-se para o diálogo, para a troca, sempre a partir da realidade e não da fantasia de que tudo é lindo, lindo está e lindo ficará se houver esforço.
O padrão dominante que, aliás, é uma ficção, já anda bastante “sensibilizado” para respeitar as minorias e está até mesmo mostrando as garras sempre que alguma pequena ameaça ao seu poder se apresenta. Resta agora “sensibilizar” as minorias para deixar de querer ser igual (a quê ou a quem?) e apreciar a diversidade.
As chamadas minorias dão sua contribuição criativa e inovadora, como dizia Luther King, quando se assumem como são, denunciam o golpe sofrido, apontam problemas e participam ativamente da busca de soluções. Fora disso, é o mundo do faz de conta e mais tempo levaremos para mudar a situação atual.

* Publicado originalmente no Blog da Rede Ubuntu - http://www.redeubuntu.com.br/blog/%C3%A9-proibido-dizer-que-doeu-mesmo-quando-est%C3%A1-doendo-e-muito

Educação Inclusiva

Reinaldo Bulgarelli,
23 de julho de 2012

Dia desses fui visitar uma escola de educação infantil aqui do bairro. Estava procurando escola para meu afilhado e começamos por uma particular. Minha preferência, para manter a coerência, será uma escola pública, mas a mãe do meu afilhado queria que eu conhecesse as opções que temos nas proximidades.
Fiquei encantado com a escola porque, sem saber, caí no paraíso da diversidade. Aquelas criancinhas todas ali brincando, se divertindo juntas e nem se dando conta de que estavam num lugar tão especial. Só mais adiante é que elas vão se dar conta disso. Acabaram de chegar ao mundo e não têm parâmetros para a comparação. Eu imagino lugares assim nos meus textos, nas minhas palestras, nos desenhos de programas que ajudo as organizações a fazer quando pensam em valorizar a diversidade.
A diretora da escola nos atendeu e foi mostrando tudo, permitindo nossa interação com as crianças, os professores, funcionários e com os pais. Eu não queria incomodar e atrapalhar a rotina, portanto, fiquei cheio de vontade de voltar a trabalhar com creche e pré-escola. Quase me matriculei na escola!
O que me encantou foi o apreço daquela escola pela diversidade. O espaço físico nem é tão bom assim, cheio de barreiras para a mobilidade de todos, mas tudo transpirava o gosto pela diversidade.
Havia educadores homens. É uma beleza ver homens não apenas em atividades administrativas. É evidente que fazem ação afirmativa para garantir uma equipe de educadores tão masculina quanto feminina. O mundo da educação, sobretudo a infantil, ainda atrai mais as mulheres. A escola, portanto, gerenciava a divulgação das vagas, as inscrições dos candidatos e a seleção da equipe. Devem considerar a diversidade de gênero como um critério para seleção que garante o sucesso da escola.
Se a escola apenas abrisse as portas sem gerenciar o processo de recrutamento e seleção, diria que não discrimina ninguém, que só apareceram mulheres. Como a escola gosta da diversidade e entende que ela constitui uma competência organizacional que faz bem para todos, não hesita em realizar ações afirmativas que garantam diversidade de gênero. Simples assim, mas algo raro de se ver ainda hoje.
Era uma escola particular, portanto, dentro do regime de segregação racial no qual vivemos, fiquei feliz ao ver tantas crianças negras. A diretora explicou que a escola não coloca barreiras para crianças negras. A fala dela dava a entender que outrora ou que em outros lugares a barreira exista. Mais que isso, ela disse que a escola busca a diversidade racial, além de diferentes classes sociais.
Disse, ainda, que a escola acabou sendo a preferida dos estrangeiros negros que estão no bairro, em geral médicos, executivos e profissionais liberais que moram ou trabalham nas proximidades. Não deixou de comentar que muitos acham que as crianças negras são pobres, talvez me incluindo entre essa multidão preconceituosa. Que nada! Algumas eram até ricas, disse a diretora, e que os pais gostavam da postura e do ambiente da escola. A diversidade racial era um fator de competitividade entre as escolas de educação infantil do meu bairro!
Eu logo perguntei sobre as atividades, querendo chegar às questões de gênero, mas sem revelar minhas verdadeiras intenções. Explicações disso e daquilo foram dadas até que perguntei se os meninos e meninas brincavam das mesmas coisas. Ela disse que era difícil quebrar os tabus. Os pais reclamam. As meninas fazem balé e tudo mais. Os meninos só fazem aulas de judô. Disse, contudo, que realizam oficinas sobre gênero para a equipe. Estão no caminho, mas não é incrível que essa barreira ainda permaneça na cabeça dos adultos?
As meninas não têm mais nenhuma ou quase nenhuma interdição e brincam de tudo, mas os meninos ainda são proibidos de brincar de boneca, casinha, enfim de tudo aquilo que precisarão para viver no século XXI. Esses meninos, mais que nunca, vão conviver com mulheres inseridas no mercado de trabalho e que esperam parceiros tão presentes nas atividades de casa como elas estão presentes nas atividades das organizações.
Vi também que havia crianças com deficiência, apesar da arquitetura nada adequada para todos, sobretudo para crianças pequenas. Torço para que saiam logo deste lugar e encontrem um espaço compatível com a proposta e com as posturas. As crianças com deficiência estavam nas turmas e não segregadas em “salas especiais”. Também não vi queixas de que as crianças com deficiência davam mais trabalho.
Há professores por aí que dizem que as crianças com deficiências devem aguardar do lado de fora enquanto eles se preparam. Há, ainda, os que dizem que é preciso um batalhão de professores auxiliares, talvez para manter a segregação dentro da sala de aula. Enquanto as professoras “normais” cuidam das crianças “normais”, o batalhão iria cuidar das “outras” crianças.
Perguntei sobre a aceitação dos pais das crianças sem deficiência. A diretora disse que a inclusão era um valor da escola e que os pais descontentes procuravam outras escolas, mas que não havia assim tanto problemas, até porque a escola já é conhecida no bairro. Era um valor, portanto, os incomodados que se mudem. A máxima de que “o cliente tem sempre razão” não encontra espaço numa organização que tem uma identidade sólida e seus valores inegociáveis. Gostei de ver e fiquei lembrando que há empresas que ainda ficam do lado do cliente, mesmo diante de práticas de discriminação contra seus funcionários.
Enfim, sai de lá encantado. Uma escola que valoriza a diversidade combate a discriminação e se organiza de maneira a promover a diversidade na maneira de ser e de realizar suas atividades. Isso é válido para toda e qualquer organização. Hoje uma aluna do curso de Sustentabilidade e Responsabilidade Social Corporativa que coordeno na FGV, a Anita, me enviou pelo Facebook uma matéria da FAPESP sobre este tema.
Vivenciar a experiência da educação inclusiva na pré-escola pode promover a abertura em relação ao diferente, dizia a autora da matéria, Karina Toledo. Estava baseada na pesquisa qualitativa com alunos entre 7 e 16 anos de idade egressos de uma determinada creche pública. A pesquisa foi realizada pelo Instituto de Psicologia da USP. Esses alunos interagiam melhor com colegas, tinham valores que facilitavam sua inserção no mundo atual e participavam promovendo soluções nas situações de conflito que envolviam preconceitos e discriminações.
“’A ideia era entrevistar esses alunos, agora no ensino fundamental e em escolas diferentes, para avaliar se a experiência da educação inclusiva pré-escolar teve impacto em suas atitudes e valores’, contou Marie Claire Sekkel, coordenadora da pesquisa que teve apoio da FAPESP.”
Hoje de manhã eu estava numa grande empresa exatamente conversando sobre como a valorização e promoção da diversidade na organização capacitava a todos para lidar com um mundo também diverso, ampliando os horizontes, formando gente criativa, inovadora, aberta a mudanças e à complexidade dos tempos atuais. Já não estão mais na educação infantil, mas a empresa também é lugar de desenvolvimento das pessoas para lidar com diferentes perspectivas.
E tem aquelas pessoas que dizem que é preciso acabar o mundo e começar de novo pela creche. Não estou dizendo isso aqui neste artigo e sou muito contrário a esta ideia, como já disse tantas vezes. A infância e a educação infantil – creche e pré-escola, são fundamentais para nossa formação, mas como qualquer outra fase da vida. Enquanto estamos vivos, estamos aprendendo. Até o último suspiro somos seres que dialogam com o mundo, inacabados, prontos para se transformar, aprender e realizar mudanças.
Há outros que dizem que de nada adianta porque a criancinha sai de uma escola assim bacana e cai num mundo perverso, logo esquecendo o que viveram. Mas a educação inclusiva não está apenas na dimensão do tempo. Está na dimensão do amor. Não há nada que o amor não possa curar ou que não possa perpetuar. Não é o tempo que cura nossas dores ou que nos salva dos espaços perversos. O tempo pode gerar esquecimento. O amor gera lembranças. Quando se vive de verdade, tudo que queremos é amor.
Educação inclusiva é gesto de amor. Não é vivência que permanece porque foi vivenciada na primeira ou na “última infância”, mas porque foi vivência significativa de acolhimento da vida como ela é. Sempre que se acolhe a vida em sua diversidade criadora, está se acolhendo o amor e nada fala mais alto do que uma experiência de amor.
* Publicado originalmente no Blog do Guilherme Bara - http://www.blogdoguilhermebara.com.br/educacao-inclusiva/