sexta-feira, 31 de maio de 2013

O mundo empresarial e os direitos LGBT

Empresas e os direitos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros
Reinaldo Bulgarelli, 31 de maio de 2013

O feriado promete 3 milhões de pessoas na 17ª edição da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo. É a maior Parada do mundo! Segundo a ABRAT GLS - http://www.abratgls.com.br/, o evento movimento mais de R$ 400 milhões na capital paulista. É o segundo evento mais importante para a economia da cidade e o que traz mais turistas para a cidade. O turismo deste segmento cresce 20% ao ano, segundo o Ministério do Turismo. O público gasta, em média, 30% mais do que outros turistas.

Essa abordagem mercadológica do evento complementa seu propósito: dar visibilidade ao movimento pelos direitos LGBT. E o mundo empresarial? Se há tantos recursos envolvidos, milhões de pessoas e um segmento cada vez mais visível e exigente, não seria óbvio que as marcas procurassem, no mínimo, apresentar-se como simpáticas à causa? Não tem sido assim. Diferente do que acontece nos EUA, Canadá, na Europa e em países asiáticos, aqui o conservadorismo se sobrepõe a argumentos mercadológicos ou até interesseiros.

A lógica capitalista não funciona diante do apelo comercial de um evento desta magnitude. Nem mesmo as grandes empresas relacionadas ao turismo, como hotéis, agências de viagem, entre outras, querem ver suas marcas associadas ao seu ganha-pão. Tenho alertado as empresas que um dia a comunidade LGBT também poderá ter vergonha das marcas que a ignoram ou rejeitam.

Uma pressão dos consumidores da comunidade e seus simpatizantes poderia fazer a diferença no final das contas. São milhões de pessoas sem um posicionamento político em relação ao consumo, mas que podem mudar do dia para a noite essa postura. A sociedade tende a caminhar por espasmos e demoniza, de uma hora para outra, um produto, serviço ou marca. Eles passam a encarnar tudo de ruim que há no mundo e o extermínio é a solução para todos os males da humanidade.

Não defendo esse tipo de postura. A demonização leva à absolvição maniqueísta de todos os outros comportamentos insustentáveis. A demonização é pontual, isola um inimigo dentro de um sistema mais amplo no qual todos, incluindo quem demoniza, também possui suas responsabilidades. Além disso, eleger inimigos a serem eliminados indistintamente nem sempre permite enxergar aliados em potencial na busca de soluções. O maior inimigo dos homossexuais e transexuais é a homofobia e não os heterossexuais, apesar deles se apresentarem, na maioria das vezes, como a encarnação desta ideologia e suas práticas de violência. Elas envolvem desde práticas de extermínio à desconsideração na hora de planejar políticas públicas ou estratégias de venda de um produto, passando pela chacota desrespeitosa, mesmo nos círculos que se dizem cultos e modernos.

Uma ideologia como a homofobia e suas variadas expressões, pode colocar uma empresa em risco, afasta-la de talentos, de clientes, de resultados financeiros ou lucros e, mais importante, de sua própria identidade, onde está inscrita sua missão, visão e valores. Quando se escolhe a homofobia como conduta, negando direitos a empregados e empregadas, tomando partido a favor de homofóbicos que não toleram a existência do outro e o respeito à diversidade sexual, coloca-se em dúvida a declaração de identidade da organização. Se é assim neste caso da homofobia, será que respeito, excelência ou qualquer outro princípio do negócio serão mesmo importantes?

Felizmente, já há um movimento consistente dentro de grandes empresas que está gerando aprendizados e construindo pontes na direção do respeito a todas as pessoas em sua diversidade sexual. Mais do que isso, há empresas que estão se antecipando na promoção dos direitos LGBT, encontrando formas de incluir a todos em benefícios e políticas que atendem ao princípio da igualdade de direitos.

Um termômetro para você, trabalhador ou trabalhadora, reconhecer se está numa empresa respeitosa para com os direitos LGBT é verificar se houve comunicação interna sobre o dia 17 de maio, dia internacional contra a homofobia. Sua empresa não disse uma palavra sobre a Parada do Orgulho LGBT que acontece em várias cidades do país? Não fez uma nota sobre o dia 17 de maio?

Essa fragilidade em relação a algo básico, como a igualdade de direitos, poderá manifestar-se ou já está se manifestando em relação a outros temas importantes para seu sucesso e ou o sucesso dos negócios. Prepara-se para deixar a empresa ou para ajuda-la a lidar melhor com a diversidade humana. Eu gosto mais da segunda alternativa, mesmo que seja arriscado, difícil e que gere críticas de quem você nunca imaginou. O que você tem feito contra a homofobia?

Entrevista para a Kultrafro sobre a questão racial

Bulgarelli, Diversidade e Sustentabilidade

Postado 19 de março de 2013 por Redação kultafro em Entrevistas                                         

 
Por Leno F. Silva
 
Reinaldo Bulgarelli é sócio diretor da Txai, empresa de consultoria na área de sustentabilidade e com forte atuação no tema da valorização da diversidade. Atua com direitos humanos e desenvolvimento desde 1978, quando foi um dos fundadores do grupo de jovens da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos de São Paulo. É autor do livro “Diversos Somos Todos”, Editora de Cultura, 2008.
Kultafro –  Os negros representam mais de 50% da população brasileira. Na sua opinião, nos últimos 10 anos essa participação também significou ascensão social e maior poder de compra. Isso também representou menos pré-conceito?

Bulgarelli -Os últimos dez anos foram fantásticos para a população negra em vários campos, incluindo ascensão social e o maior poder de compra. Só a questão do acesso à universidade é um dado que merece muita atenção de todos. A ascensão social da população negra é uma forma de enfrentamento do racismo, mas ele tem muitas faces. Com maior presença em lugares antes frequentados apenas por brancos, vemos que está aumentando significativamente o número de casos de discriminação racial. Foi publicado no Correio Braziliense esses dias que duplicaram as denúncias entre 2010 e 2011 (http://www.correiobraziliense.com.br/). Será o que o Brasil está ficando melhor na questão das relações raciais? Vemos tantos casos explícitos de racismo que é difícil responder positivamente à questão. Há ainda quem diga que não somos racistas, o que é também muito preocupante.

Kultafro –   Qual a sua avaliação sobre as cotas? De que forma elas contribuem para uma maior equidade social?

Bulgarelli – Eu fui sempre muito favorável às cotas no âmbito das políticas públicas, não apenas na educação. E os resultados têm demonstrado que elas são um sucesso em relação aos universitários negros. Temos hoje milhões de estudantes negros que tiveram acesso ao ensino superior por conta das cotas. É a formação de uma elite intelectual e poderá ser uma elite econômica participando em espaços antes reservados apenas aos brancos. É preciso lembrar que cota é meio e não fim. Ela enfrenta o racismo, no sentido desta negação do direito a compor a elite do país, mas não dissolve como num passe de mágica a discriminação racial. Talvez até acentue, como disse antes, porque a elite branca tem dificuldade de dividir seu espaço. Uma forte manifestação do racismo que enfrentamos ainda é a colocação profissional destas pessoas formadas, mesmo que nas melhores universidades do país. Os números do mercado de trabalho ainda não melhoraram na proporção desta inserção da população negra na universidade. Merece atenção das empresas, mas também do Estado brasileiro.

Kultafro –  Os negros têm pouca participação em cargos executivos, principalmente no mundo privado. Como podemos avançar nesse contexto?

Bulgarelli – Numa organização, como nas empresas com as quais trabalho, acho que o mecanismo da cota não funciona quando utilizado para não se fazer nada. Sempre lembro aos profissionais das empresas que cotas são meio e não fim, que as ações afirmativas não se reduzem a cotas e que, com cotas ou sem cotas, o importante é ter um bom plano de ação. Só definir cotas não resolve no âmbito de uma empresa. Uma empresa séria e bem intencionada irá construir um plano de ação que independe das cotas para acelerar os resultados ou impactos na demografia interna. No entanto, eu já estou convencido de que os últimos vinte anos foram suficientes para as empresas se organizarem e atuarem fortemente no enfrentamento do racismo. Elas não o fizeram e os dados têm demonstrado isso. Portanto, eu entenderia que o Estado precisa começar a discutir mais seriamente o estabelecimento de cotas nas empresas pequenas, médias e grandes, a exemplo do que acontece com a pessoa com deficiência.

Kultafro –   Historicamente a mulher negra é duplamente discriminada. O que é preciso ser feito para mudar essa triste realidade?

Bulgarelli – É preciso que o enfrentamento do racismo e do machismo aconteçam de maneira integrada no Brasil. Um sem o outro não tem efetividade. Ainda para citar o exemplo da pessoa com deficiência e o sistema de cotas, vemos se repetir com eles essa preferência por brancos e homens, mesmo dentro de um sistema de cotas. Defendo que o Estado deve pensar a questão de maneira mais ampla, considerando cotas no mercado de trabalho, por exemplo, para muitos segmentos, mas garantindo impacto positivo nos indicadores de maneira integrada. A própria sociedade civil precisa criar espaços mais fortes de articulação entre as diferentes causas. Parece utópico, no sentido de inatingível, mas é importante que cada segmento da população encontre formas de manifestar solidariedade a outros segmentos discriminados. A cultura da apartação no Brasil tem algo de comum a todos.

Kultafro -Como se explica a adesão tão grande à parada do Orgulho LGBT e pouca mobilização quantos aos direitos e reivindicações desses mesmos cidadãos na esfera do trabalho e das políticas públicas?

Bulgarelli -Precisamos entender o mundo do trabalho como o espaço privilegiado para se produzir a desigualdade. Eu trabalho com a ideia de que este espaço é parte do problema, portanto, precisa e pode ser parte da solução. Nem a ascensão social da população negra, a grande mobilização em torno dos direitos da população LGBT, da mulher, da pessoa com deficiência, entre outros, tem alcançado resultados positivos na proporção desta lucidez da sociedade ou dos esforços realizados por todos para se qualificar profissionalmente o trabalhador brasileiro. É a discriminação fazendo seus estragos e deixando que aspectos culturais ou ideológicos contaminem práticas de gestão e conceitos como mérito, competência, entre outros. Se houvesse essa objetividade que o mundo empresarial diz prezar, não teríamos os dados atuais. Por isso é tão importante para as empresas enfrentarem a discriminação porque ela é inimiga do mérito e causa prejuízos imensos para as pessoas, para os negócios e para a sociedade.

Kultafro –  A formação, o empreendedorismo, a economia criativa e o acesso às novas tecnologias, em articulação com políticas públicas inclusivas, podem contribuir para que as classes historicamente discriminadas consigam transformar as suas realidades?

Bulgarelli – Tem sido assim e é evidente que as pessoas buscam alternativas quando encontram portas fechadas. A mulher tem buscado alternativas diante deste fechamento do mundo empresarial para acolher, por exemplo, a gravidez. Porém, entendo que as pessoas querem se dedicar a novos campos de criação e novas formas de acesso a recursos financeiros por escolha e não porque é a única alternativa que lhes resta. A discriminação, paradoxalmente, tem ajudado e muito a fortalecer o empreendedorismo no país, já que outras portas estão fechadas e rejeitam a diversidade. Essas novas expressões dentro da economia só se fortalecerão, contudo, quando encamparem e contribuírem no enfrentamento da discriminação. Não há paraísos nesta história e velhas estruturas racistas, por exemplo, continuarão alimentando o racismo em toda a sociedade. O que há de novo, assim como no campo do acesso do negro à educação universitária, é a formação de novas elites para combater em pé de igualdade o que lhes aflige, com voz e presença em espaços antes entregues apenas a um determinado tipo privilegiado dentro da sociedade: o homem, branco, heterossexual, sem deficiência…

Kultafro – Para você, de que forma a kultafro pode colaborar para que esse processo de transformação dos negros principalmente no mundo do trabalho e da economia, seja efetivo? 

Bugarelli – Fazendo o que está fazendo e muito bem. Dando voz às pessoas que nem sempre são ouvidas em outros espaços, criando referências positivas, mostrando alternativas neste cenário de discriminação e orientando para a realização de práticas cada vez melhores de gestão dos empreendimentos. A Kultafro deve ser cada vez mais presente no país que está, com muita dificuldade, se reinventando, buscando novas formas de expressão de sua maneira de ser e de realizar seu projeto de nação. Ter espaços como este para se enxergar, se identificar, ver que os esforços de cada um encontram uma multidão de outras pessoas interessadas nesta reinvenção, é muito prazeroso. Torço para que a própria comunidade valorize o site, apoie, garanta seu sucesso e permanência, bem como torço para que as grandes empresas vejam na Kultafro um canal importante de diálogo com a comunidade negra e todos os negócios que giram em torno de suas propostas. Fico muito satisfeito com essa iniciativa porque ela torna o meu país melhor para mim e para todos.


Passeata do movimento negro, 1979. O Reinaldo é o menino que aparece na
foto logo abaixo da letra “m”, da palavra Empregos p/ negros, na faixa.

sábado, 18 de maio de 2013

Meio ambiente, direitos humanos e o desenvolvimento sustentável


A sustentabilidade e seus mundos em conflito
por Reinaldo Bulgarelli
17 de maio de 2013

Empresa sustentável é aquela que trabalha para o desenvolvimento sustentável, ou seja, uma agenda ampla que visa melhorar o mundo ou até salvar a espécie humana da extinção. É uma nova utopia, como dizem alguns, impondo-se para além da tradicional polaridade entre esquerda e direita.

Os profissionais que trabalham na área de sustentabilidade e responsabilidade social empresarial devem contribuir para que a organização aprenda o mais rápido possível a gerenciar seus impactos positivos e negativos na relação com todos os stakeholders. É um profissional que habita a intersecção entre a empresa e a sociedade, entre os setores privado, público e não governamental.

A agenda envolve aspectos econômicos, sociais, ambientais, tanto quanto aspectos culturais e políticos, entre outros, tudo junto e ao mesmo tempo. É um profissional que integra diferentes olhares porque a agenda para tornar o mundo mais sustentável assim o exige. Mas, não é tarefa fácil.

No histórico do tema no mundo, há uma apropriação dos sujeitos que atuam no campo do meio ambiente e do econômico, mais atentos aos dramas vividos pelas muitas espécies, em função do modelo de desenvolvimento destruidor da natureza. Também há uma apropriação dos sujeitos que atuam no campo dos direitos humanos, mais preocupados com aspectos culturais, sociais, políticos, com as desigualdades e injustiças que impedem o desenvolvimento sustentável.

No âmbito dos documentos produzidos pela ONU, não houve uma separação, mas uma integração dos muitos olhares. Mesmo os documentos que falam sobre o clima, por exemplo, abordam a questão com envolvimento do humano como parte do problema e da solução. O desenvolvimento sustentável é desenvolvimento humano no contexto da natureza onde todos vivem e interagem. A base do conceito é a interdependência, o sentimento de pertencimento a uma rede complexa, orgânica, sistêmica, onde tudo está interligado e não se basta isoladamente.

O diálogo, contudo, entre os sujeitos da sustentabilidade nem sempre é tranquilo. Nesta divisão grosso modo, superficial e até caricata dos que entendem sustentabilidade como meio ambiente e os que entendem sustentabilidade como direitos humanos, há visões de mundo, valores, prioridades e maneiras de agir sobre a realidade nem sempre coincidentes.

Há uma jornada de aprendizados e tentativas de superação dos reducionismos que estamos realizando para integrar visões, valores, prioridades, estratégias e maneiras de agir na realidade. As agendas dentro desta agenda maior do desenvolvimento sustentável ganham maior visibilidade e nos separam conforme a visão pende mais para um lado ou outro nesta visão grosseira que estou fazendo: meio ambiente e direitos humanos.

Enquanto a extinção do mico-leão-dourado é intolerável para a turma que dá mais atenção à questão ambiental, a turma dos direitos humanos é mais afetada pela denúncia de trabalho infantil na cadeia de negócios de uma empresa. A poluição de um rio fala diretamente ao coração do ambientalista tanto quanto a discriminação racial fala diretamente ao coração do defensor de direitos humanos.

Há profissionais da sustentabilidade para quem a agenda de meio ambiente se sobrepõe à agenda de direitos humanos e vice-versa, numa ineficiência que tornam lentos os avanços necessários para se compreender quais são os problemas e quais as soluções a serem produzidas.

Desta forma, pessoas mais ligadas à questão ambiental toleram a defesa que Marina Silva fez do deputado pastor Marco Feliciano, dizendo ser ele um equivocado e vítima de perseguição religiosa. Seus partidários mais raivosos chamam de intriga da oposição, de perseguição política a crítica à sua fala de que Marco Feliciano é um equivocado ao invés de reconhecê-lo como homofóbico e racista. Não diz nada ao coração de alguns defensores de Marina sua postura meramente religiosa e nada estadista em relação aos direitos LGBT. Para estes, mais importante é garantir que a natureza seja preservada e ela é tida como a encarnação do desenvolvimento sustentável, como se esta agenda tão rica coubesse numa pessoa ou num partido político.

Por meio das polêmicas em torno do pastor político e da política religiosa, candidata à Presidência da República, é possível perceber com clareza a divisão dentro da comunidade dos que se dizem trabalhar pelo desenvolvimento sustentável. Se há essa insensibilidade para um tema ou outro, a hierarquia infundada que sobrepõe uma causa à outra, não há compromisso com o desenvolvimento sustentável. Ele exige uma visão mais integrada e ambos os grupos perdem a razão quando toleram o intolerável, seja a destruição de uma floresta ou o assassinato de homossexuais incentivado também por discursos religiosos fundamentalistas.

Será que Marina irá nos dividir? Eu entendo que está nos dividindo, mas já estávamos divididos antes dela e agora estamos vivenciando um retrocesso neste processo difícil de reunir visões e soluções para os desafios do mundo atual. Dentro de uma empresa, no movimento de sustentabilidade e responsabilidade social empresarial, na produção teórica e nas salas de aula que tratam de desenvolvimento sustentável, esta divisão entre os que pesam mais aspectos ambientais do que humanos tende a se aprofundar. As paixões na defesa de Marina ou no ataque a ela levam junto muito do que construímos até aqui de uma agenda integrada e ampla para o século XXI.

Tarefa de todos, no meu entender, é aproveitar esse momento de conflito para explicitar suas posições e partir urgentemente para o diálogo. A questão transcende candidaturas à Presidência da República, mesmo passando por elas. O que não se pode tolerar é a “sustentabilidade meio-boca”, gente que tolera o intolerável, tem estratégias incompatíveis com os princípios de construção de um mundo sustentável e diz ser o que não é. Pode-se dizer tudo de quem tolera a destruição do meio ambiente, o racismo e a homofobia, menos que seja um profissional da sustentabilidade. Vamos aproveitar esse momento de explicitação do conflito para construir um novo patamar nesta jornada ou vamos sucumbir nesta vala moralista e de visão estreita que nos leva para o passado?

sexta-feira, 17 de maio de 2013

Para o dia das mães, mesmo quando elas ainda estão do lado de fora da empresa

Mulher grávida teclando no trabalho
Para o dia das mães, mesmo quando elas ainda estão do lado de fora da empresa.

por Reinaldo Bulgarelli

O chefe quase teve um troço. A notícia da gravidez era o mesmo que decreto de falência da empresa. A área tinha quinze mulheres, todas jovens, todas solteiras, na medida da encomenda feita ao pessoal do recrutamento e seleção da empresa. No entanto, era a quinta a anunciar que sairia de licença maternidade. Anuncio feito, resta ao chefe avisar ao chefão de que não dariam conta de tanto trabalho.

E o chefão foi logo avisando que não haveria contratações para substituir as “faltosas”.  Disse que isso era praga daquela mulher demitida por ter saído de licença maternidade. Ela só havia combinado a gravidez com o pai da criança e não com o chefe. Assim que voltou, foi devidamente punida. A mulher tem que escolher porque ali era lugar de trabalhar e não de ter vida, muito menos de gerar outras vidas.

O chefe voltou pra sua sala com a firme determinação de pedir ao RH um plano efetivo para o engajamento das colaboradoras. Engravidando, não estavam sendo nada colaboradoras. Precisavam entender que a empresa queria sua entrega total pelos próximos trinta anos, nem que fosse para demiti-las nos próximos meses, ao bel prazer do chefão e sua contabilidade. O plano de engajamento de corpos e almas teria uma mensagem explicita de que engravidar seria considerada alta traição para com os valores e o sucesso da empresa.

No primeiro dia de palestras, o consultor subserviente às ordens do RH, distribuiu bombons às colaboradoras, leu poesia sobre o que era ser mulher no século XXI e deu o recado do chefe e do chefão: ou a vida ou o trabalho. Nada menos que entrega total ao trabalho seria entendido como aceitável. Disse também, alertando que era opinião pessoal, que defendia exames para identificar grávidas em processo seletivo. Ah, também disse que defendia demissão por justa causa para quem faltasse com desculpa de que tinha passado o dia na fila do pronto-socorro tentando atendimento para a criança.

Mensagem dada, os resultados foram medidos e o número de faltas diminuiu, mas a produtividade também. O clima foi medido e as mulheres eram as mais críticas. Já não eram mais as colaboradoras que colaboravam com o chefe. Lá vai o chefe de novo para a sala do chefão com o plano de demissão coletiva para contratação apenas de homens. O chefão lamentou muito porque iriam perder o enfeite da empresa, que era a mulher, o perfume da produção, a única beleza entre os barbudos da liderança, toda masculina, evidentemente. Ele lembrou-se do último dia das mães em que fizeram uma homenagem à sua querida mãezinha. Todos cantaram a música do Teixerinha, mas ele, evidentemente, não chorou. Não seria profissional.

Passada a lamúria, fizeram as contas e viram que o imenso prejuízo com as demissões compensaria. Não teriam mais essas licenças maternidades. O ajudante do chefão começou a pensar no futuro e a celebrar uma empresa sem mulheres, sem lágrimas, sem TPMs, sem a voz irritante das mulheres em seus ouvidos. O chefe lembrou-se de que não podia chamar a atenção de uma mulher que elas logo choravam. Com os homens, dizia ele, podia gritar, dar na cara, passar por cima que estava tudo bem.

O ajudante lembrou também que nem teriam mais a despesa para fazer um banheiro feminino no interior da fábrica, já que só havia um bem distante, no prédio administrativo. E por ai foi, até se darem conta de que deveriam fazer uma festa dos barbudos para celebrar a nova era da empresa. Foi agendada a festa para o dia das mães, reunindo os barbudos para cantar novamente, mas depois do expediente.

A empresa cumpriu seu plano, demitiu todas as mulheres, cerca de 20% da empresa, com direito a aperto de mão na saída, devidamente acompanhada pelos seguranças, gentis colaboradores terceirizados. O sindicato reclamou, mas nem tanto quanto da última vez em que decidiram demitir os velhinhos da empresa, aqueles sujeitos com mais de 30 anos que colocavam o plano de saúde em risco, segundo cálculos do especialíssimo consultor.

Nem no RH havia mais mulheres. Foram as últimas a serem demitidas. A empresa estava do jeito que o chefão queria. Faliu? Não. Hoje, como esta empresa, há muitas que nem têm que colocar mensagem pelo dia das mães. Mesmo assim, sobrevivem e vão pra frente. Achou que eu dizer que elas faliram? Olhe os dados do mercado de trabalho, sobretudo os dados sobre mulheres em postos de liderança. O chefão continua fazendo estragos.

Mas, e todos esses dados sobre as mulheres serem maioria da população, mais escolarizadas, mais isso e mais aquilo? A lógica do machismo não segue a lógica do mundo, mesmo a lógica do capitalista mais mesquinho. Há empresas ainda hoje que desprezam as mulheres e têm lucros exorbitantes. Não estão nem aí para as estatísticas e muito menos para a vida. Dão seu jeito, mesmo que seja complicadíssimo achar os tais talentos, desde que sejam homens.

Se o argumento é apenas esse das estatísticas, do pragmatismo ou da economia inteligente, não há muitas esperanças. O problema é o machismo, que insiste e persiste tornando possível, à custa de toda a sociedade, um mercado de trabalho masculino, masculinizado e masculinizante.

Não se trata de contrapor com uma lógica empresarial o que o próprio mundo empresarial produziu. Trata-se de reconectar com a vida como ela é e reinventar a administração à luz de novos valores e da lógica da sustentabilidade. Dá pra viver sem as mulheres e, mais ainda, obter lucros à custa de sua humilhação nas propagandas da empresa, vendendo produtos para elas sem que sejam consideradas do lado de dentro dos departamentos. Trata-se, portanto, de uma visão de mundo, da escolha de um projeto de empresa e de país. Qual é a sua escolha?