domingo, 8 de março de 2015

A Operária Adriana e o Dia da Mulher na empresa dos homens


Meninos trabalhando

A operária Adriana e o dia da mulher na empresa dos homens

Reinaldo Bulgarelli, Txai Consultoria e Educação
08 de março de 2015

Adriana foi convidada para o evento do Dia da Mulher. Ficou surpresa porque ela trabalhava na fábrica e essas celebrações eram na sede da empresa. Ainda maravilhada com a novidade, perguntou ao seu colega José Antônio se não iria participar. Ele disse que o evento era apenas para as mulheres, conforme estava no convite. Ela leu novamente e não falava nada sobre isso, mas ele retrucou mostrando o convite cor-de-rosa que só falava em mulheres. Na porta do ônibus fretado distribuíam rosas vermelhas. Ela concordou com José Antônio.
Lá chegando, mais mimos para as mulheres. Um fornecedor oferecia creme depilatório. O cartão cor-de-rosa dizia algo sobre mulheres e as barreiras que os pelos ofereciam à sua felicidade. Adriana logo lembrou-se de José Antônio. Olhou à sua volta para constatar que havia apenas mulheres no evento, tanto da sede como de todas as outras fábricas da empresa.

Sentadas no chique auditório, todo enfeitado com frases de mulheres famosas, impressas em papel cor-de-rosa e ilustrados com flores, ouviram o presidente da empresa fazer a abertura do evento:
- Estamos aqui para celebrar o que há de mais belo, perfumado e encantador nesta empresa: as mulheres. A beleza de vocês torna nosso dia melhor. Vocês são o enfeite desta empresa!

Ele se retirou em seguida dizendo que iria para uma importante reunião com os executivos da empresa na qual decidiriam questões essenciais para o futuro dos negócios. Adriana cochichou com sua colega:
- Pensei que estivéssemos trabalhando, mas somos só enfeite. Até o evento é um enfeite porque o homem tem coisas mais importantes pra fazer...

Depois, um grupo de mulheres, todas muito bem vestidas, saltos altos, cheias de joias e cabelos impecáveis, subiu ao palco e uma a uma foi se apresentando. A diretora de RH da empresa festejou o fato da empresa possuir agora três por cento de mulheres depois de cinco anos de esforços. Haviam criado um grupo de mulheres no ano passado e disse também da felicidade com este primeiro evento da empresa no Brasil. Deixou escapar, contudo, que lamentava não estar na reunião que o presidente agendou bem no horário do evento. Ela era a única executiva no grupo de quinze homens. Adriana pensou que a situação era igual à que vivia na fábrica. Era a única mulher em sua área. Havia apenas trinta e seis mulheres operárias em um grupo de mil e duzentos operários.
Foi a vez de uma das advogadas do jurídico da empresa fazer a apresentação sobre o grupo de mulheres. Ela explicou que o grupo pensava em como aumentar o número de mulheres nos cargos executivos. Disse que haviam criado outro grupo para pensar especificamente na questão da maternidade e carreira.

Sobre este assunto, convidaram uma executiva de outra empresa para contar como foi conciliar a carreira com o fato de ser mãe de um filho que, aliás, estudou em Harvard e hoje é presidente de uma grande multinacional. Ela disse que sem a babá que a acompanhou a vida toda não teria conseguido subir na carreira.
Quando já estavam para encerrar o evento, depois de várias falas sobre como era maravilhoso ser mulher e mãe, abriram para dois minutos de perguntas da plateia.

Adriana levantou-se imediatamente e, quando viu, o microfone já estava em sua mão.
- Eu queria agradecer pelo evento tão bonito que tivemos. (aplausos) Mas, os homens não deveriam estar aqui para escutar tudo isso? (mais aplausos). Meu marido, por exemplo, até me ajuda em casa, mas eu não gostaria que ele me ajudasse e sim que dividisse comigo as tarefas. Lá em casa, ele é o enfeite quando se trata de lavar louça e aqui na empresa eu descobri hoje que eu sou o enfeite. (silêncio total)

Alguém da organização do evento grudou ao lado de Adriana e segurou o microfone para ela lembrando que deveria ser breve.
- Vou ser breve, mas queria dizer que vocês bem que poderiam pensar também nas mulheres da fábrica. Olha esse uniforme! Um calor terrível e o uniforme é o mesmo em todas as cidades do norte ao sul do país. E esse modelo? Quem desenhou era homem e só pensou nos homens. Tudo bem que eles são maioria, mas é para continuar sendo assim que bolam essas coisas? Queria dizer também que acho lindo vocês pensarem numa sala de manicure aqui na sede, mas na minha fábrica não tem banheiro para mulheres. Nós andamos muito para ir até a área administrativa e o meu chefe sempre faz piadinhas sobre como mulheres são menos produtivas. Mais uma coisa para eu me sentir culpada na vida. Lá em casa eu me sinto culpada por não dar conta das crianças e da casa – e olha que eu não tenho empregada doméstica, como vocês! Lá o problema é que meu marido não divide as tarefas de casa comigo e aqui o problema é que não pensaram e continuam não pensando nas mulheres que trabalham na empresa. Muito boas as dicas que vocês deram sobre como lidar com a culpa, mas eu queria muito aprender sobre como gerar culpa nos homens. Ninguém pergunta para eles sobre como é conciliar a carreira com a paternidade. Adorei essas dicas sobre como ser mais assertiva, objetiva e só chorar escondida no fundo do banheiro. O banheiro é tão longe que nem sei se conseguiria segurar o choro quando gritam comigo, mas e as dicas para os homens serem mais respeitosos com todos?

Desligaram o microfone para encerrar o evento, mas as mulheres da plateia estavam gostando e pediram para a Adriana continuar.
-  Como a empresa vai aumentar o número de mulheres em cargos de liderança aqui na sede se há tão poucas mulheres nas fábricas? Sei que não temos plano de carreira na fábrica, mas os problemas são comuns porque tudo foi pensado por homens e para homens. Não seria o caso de pensar a empresa toda quando falamos de mulheres? Vocês têm uma empregada doméstica, que deve ser negra, como eu, para ajudar nas atividades da casa. Nós, operárias, não temos empregadas, mas nossas mães ou até nossos próprios filhos cuidando da casa enquanto trabalhamos. Não é para pensar em todas as mulheres e seus desafios? Para nós também seria ótimo termos seis meses de licença maternidade, tanto quanto seria para vocês aqui na sede. Será que a empresa vai ter um prejuízo imenso por ter mulheres ou por não ter mulheres? E tudo gira só em torno da maternidade?

Alguém se levantou no palco para agradecer e cortar, mas Adriana retomou o microfone.
- Eu quero fazer parte deste grupo e ele não deveria pensar apenas em carreira, mas em como, em tudo, aqui poderia ser um bom lugar para homens e mulheres trabalharem. Isso de subir na carreira eu penso que é consequência da empresa ser mais aberta para homens e mulheres, a nossas questões específicas e os benefícios que traz para todos. Ou não tem benefícios? Também vejo o jeito dos homens lidarem com as máquinas e detesto quando me elogiam por ser mais delicada. Delicadas são as máquinas de hoje e esse elogio é uma ofensa para os homens. Até quando eles vão repetir que são maioria porque o trabalho exige força, como se fossem apenas músculos sem cérebro e sentimento? Nós, que somos mães, queremos embrutecer nossos meninos para sobreviverem neste mundo?

Na saída do evento, Adriana foi cumprimentada por muitas mulheres e a diretora de RH a convidou para fazer parte do grupo. Outras mulheres torceram o nariz. Uma colega chegou a dizer que ela era feminista e que não sabia seu lugar. Todas ganharam um bombom com um lindo laço cor-de-rosa e uma propaganda de outro fornecedor. O cartãozinho rosa dizia que a família era a coisa mais importante do mundo e que a mulher era o centro do universo.