terça-feira, 7 de abril de 2015

O poder da cultura sobre a licença maternidade


O poder da cultura sobre a licença maternidade

Reinaldo Bulgarelli
07 de abril de 2015

Beatriz Portugal, jornalista freelance, escreveu um delicioso relato na perspectiva de gênero sobre sua experiência na Islândia. A Islândia é citada sempre que se fala em equidade entre homens e mulheres. O país está a cinco anos consecutivos no topo do ranking anual do Fórum Econômico Mundial.
 
Mesmo no topo, ainda há desigualdade em relação ao salário pago a homens e mulheres, ou seja, não há ainda nenhum país que tenha alcançado pleno desenvolvimento no tema.

Contudo, essa comparação com outros países permite observar comportamentos da sociedade que se refletem no mercado de trabalho. Beatriz fala logo de cara em maternidade e da premissa dos direitos iguais entre pai e mãe. Lá a licença é de nove meses ao todo. Uau! São três meses para a mãe, três meses para o pai e outros três que podem ser usados e divididos pela mãe e pelo pai. Um avanço e tanto.
 
Por que a maternidade é alvo da proteção da legislação aqui no Brasil? Por que a sociedade ainda não demanda por direitos iguais e cabe apenas à mulher, na cabeça dos legisladores, a tarefa de cuidar da criança. Bem verdade que a criança também tem direitos nesta história e a amamentação é uma delas, de preferência, nos primeiros seis meses. Tirando a gravidez e a amamentação, não há nada que diga respeito apenas à mulher e, mesmo a gravidez e a amamentação podem e devem ser acompanhadas de perto pelo pai.

A legislação na Islândia expressa uma visão de mundo no qual homens e mulheres têm direitos iguais, incluindo a constituição da família, o cuidado com os filhos e com a casa. O homem não ajuda em casa, ele faz o que deve fazer. A mulher não tem “privilégios” por ser mãe. A licença é para que ambos cuidem dos filhos, considerando as diferenças, mas sem gerar desigualdades.

Uma das desigualdades criadas com a legislação que não parte da premissa da igualdade e, portanto, da responsabilidade de homens e mulheres para com o desenvolvimento da criança, é a do acesso e permanência da mulher no mercado de trabalho. Usa-se esse fato da gravidez e da maternidade para pagar menos à mulher e para criar barreiras para seu desenvolvimento profissional.

Se a legislação pensa nos três – na mulher, no homem e na criança, não é apenas a mulher o problema da empresa, mas a família, a paternidade e a maternidade. Como o mercado de trabalho ainda avesso a gente em sua diversidade, pensando no nosso caso aqui no Brasil, não tem como se livrar totalmente de homens e mulheres, é obrigado a conviver com os dois e com essa legislação que obriga a empresa a conviver com um fato da vida: há pessoas que gostam de ter filhos e que gostam de cuidar deles.

Diz a Beatriz que na Islândia é até mal visto um pai que não assume sua responsabilidade e entrega tudo para a mulher cuidar. Virou coisa feia ser homem que não participa como é feio fumar, contar piadas homofóbicas, desprezar questões ambientais e assim por diante. Como é valor para a sociedade, as práticas de gestão, com seus filtros sempre largos a tudo de bom e tudo de ruim que há na cultura, tender a ver com maus olhos o profissional homem que não cumpre com suas obrigações. Viva a Islândia!

Aqui, um homem que pede para sair mais cedo para levar a criança no médico vai gerar profunda admiração pelo feito extraordinário e o comentário maldoso de que é mal casado porque a mulher, relapsa, não cumpre com sua obrigação. Estou exagerando?

Lá na Islândia já não é mais estranho, como é para nós, que um homem comente no trabalho que está com o corpo dolorido porque fez tarefas domésticas naquele dia: lavou, passou, cozinhou, limpou o banheiro, a cozinha, ficou com a criança no colo pra cá e pra lá e coisas do tipo. É a igualdade e suas implicações maravilhosas para o cotidiano de homens e mulheres.

Claro que um casal deve poder escolher, dependendo do momento e do desempenho na carreira, quem vai se dedicar mais ao trabalho ou à casa, mas há a escolha e ela pode ser tanto do homem como da mulher, sem estigmas ou o rótulo de que um deles está fora do lugar. O trabalho e a casa são lugares tanto de homens como de mulheres. Que sonho!

Lá, as mulheres têm filhos mais cedo e 88% das que estão em idade economicamente ativa trabalham. A taxa de fertilidade é das mais altas da Europa com média de dois filhos por mulher. Aqui, o mercado de trabalho ainda é masculino, o desemprego é feminino, mesmo com a sociedade brasileira sendo constituída por maioria de mulheres e tendo elas mais anos de escolaridade do que os homens. Melhor nem falar da diferença de salário ou de acesso à política, com um Congresso masculino e que tem que pensar a sociedade toda.

Para a Europa pode ser importante essa alta taxa de fertilidade, enquanto aqui as regras para o mercado de trabalho geraram um dos mais bem-sucedidos controle de natalidade do mundo. Não dá para escolher. A regra é clara: ou a mulher escolhe trabalhar ou viver. Sempre lembro que parece um assalto: a bolsa ou a vida!

Não bastasse um mercado de trabalho ainda distante desta ideia de igualdade entre homens e mulheres, temos um Congresso cada vez mais conservador que, com base em religião, diz que o trabalho da mulher está destruindo a família brasileira. Tudo que puderem fazer para colocar a mulher de volta ao lar com seu papel bem definido, melhor para a família. Ô atraso!

Gosto de analisar a Islândia nestas questões de gênero porque fica evidenciada essa questão de valor, da igualdade como valor, do cuidado compartilhado como valor. Na Islândia, a sociedade, portanto o mercado de trabalho, entendeu que gravidez e maternidade fazem parte da vida e incorporam esse fato na gestão empresarial.

Aqui ainda se tem que escolher entre viver e trabalhar, então tem algo errado. Cada talento que a empresa perde por conta desta falsa escolha deveria pesar na consciência, além de pesar no bolso. Enquanto não for valor lidar com a vida como ela é, as empresas preferem pagar o preço, ter prejuízo, ver o talento ir embora e sem se lamentar, culpando a mulher pela "escolha", porque mais importante é manter o controle e a ordem. Tudo que não é homogêneo traz uma complexidade que é encarada como problema e não como solução.

Nem dá mais pra dizer que é a ordem dos homens, apesar deles terem criado as empresas à sua imagem e semelhança, sobretudo de um padrão de homem idealizado: livre de gravidez, da amamentação, bem como livres do afeto pelos filhos, pela vida, pela família, pelo lazer, com foco apenas na empresa e na carreira. Sabem de nada, inocentes!

Hoje há homens que também não se encaixam mais neste padrão avesso à paternidade responsável, participativa, que compartilha o prazer de viver e de trabalhar, o prazer de ver o negócio e os filhos crescerem. Triste essa falsa escolha que o ambiente de trabalho ainda impõe às mulheres e, mais recentemente, aos homens que desejam algo mais do que ser uma “mão-de-obra”. E tudo porque ainda não paramos direito para pensar o quanto faz bem para os negócios saber lidar com a vida, a vida como ela é.