sábado, 2 de janeiro de 2016

Dia Mundial da Paz: a vontade de ser um só coração

Dia Mundial da Paz: a vontade de ser um só coração
Reinaldo Bulgarelli, 01 de janeiro de 2016

As redes sociais nos colocam hoje diante de uma pluralidade de prioridades, interesses, visões, opiniões, desejos, entendimentos, sentimentos, crenças, valores, posicionamentos que estão presentes ali no nosso dia a dia, nem sempre reunidos num só lugar, nem sempre tão explícitos ou tão visíveis. O que é motivo de aplauso para uns pode não ser para outros, seja por indiferença ou ódio. E aquela vontade de ser umbigo do mundo me faz lembrar daquele dia triste em que meu pai morreu e o mundo não parou. Nem que ele fosse a pessoa mais importante do mundo, esse mundo não iria parar e nem haveria unanimidade sobre sua importância.
Mas algo em mim teima em querer reinar absoluto segundo meus sentimentos. Se eu estou triste, todos deveriam estar. Se eu estou pensando algo de um jeito, é inacreditável como os outros não pensem da mesma forma. Além de unanimidade, algo em mim exige do mundo a sincronia. Se eu desejo a paz, um mundo melhor, todos deveriam estar unidos, sintonizados no meu desejo naquele mesmo instante. Não é assim.
Parece que a felicidade depende da homogeneidade, todos num só coração, como me ensinou a musiquinha da Copa de 1970. Parece que o paraíso é quando todos juntos formarmos um só corpo, mente e coração alinhados de forma absoluta. O melhor dos mundos ou o mundo melhor será assim com todos juntos, sincronizados, unânimes, integrados, unificados, sentindo e pensando do mesmo jeito. Não vai ser assim.
Então, por que a insistência? Ela traz sofrimento, decepção com a humanidade toda, vontade de desistir, muito tempo perdido, enfim, falando mal da vida e dos humanos. É muita energia perdida para homogeneizar ao invés de dialogar e compreender o que é diferente, divergente, inimigo da minha maneira de ser, fazer e se relacionar no mundo.
Gastamos um tempão com isso, muita energia e a depressão é o resultado dessa frustrante expectativa de que tudo fosse unificado para ser bom. Alguém faz uma besteira, entre os mais de sete bilhões de pessoas que compartilham a vida no mesmo tempo que eu, e isso basta para destruir minha crença na humanidade inteira. Não é nada saudável viver desta maneira porque a busca pelo absolutamente homogêneo para que haja paz parece imobilizar ao invés de gerar ação. Um otimismo extremado na humanidade toda ou uma visão catastrófica sobre nós todos não parecem construir um bom futuro.
“A análise histórica e o pensamento político permitem crer, embora de modo indefinido e genérico, que a estrutura essencial de toda a civilização atingiu o ponto de ruptura. Mesmo quando aparentemente melhor preservada, o que ocorre em certas partes do mundo, essa estrutura não autoriza antever a futura evolução do que resta do século XX, nem fornece explicações adequadas aos seus horrores. Incomensurável esperança, entremeada com indescritível temor, parece corresponder melhor a esses acontecimentos que o juízo equilibrado e o discernimento comedido. Mas os eventos fundamentais do nosso tempo preocupam do mesmo modo os que acreditam na ruína final e os que se entregam ao otimismo temerário.” Hannah Arendt no prefácio à primeira edição de “As Origens do Totalitarismo”, no verão de 1950.
Devo abrir mão de algo para me harmonizar com o mundo? Às vezes sim, mas o mais importante é rever o que entendo por harmonia, paz, paraíso ou mundo melhor. Qual é a minha utopia? Se for essa da unidade de mentes e corações em torno do que considero o melhor, vou gastar a vida como um tirano que faz de tudo para tornar o mundo à minha imagem e semelhança. Não é ato de criação, mas de destruição. Não é ponto inicial, é ponto de chegada.
Nada como uma boa causa, segundo meu entendimento, para sair por aí impondo vontades ao invés de apenas expressar meu ponto, viver segundo essa boa causa e conviver com a divergência num enfrentamento diário para chegar a algum lugar que não seja o extermínio da vida como ela é. Não vai dar certo maldizer a escuridão, segundo meus padrões de luminosidade, ao invés de encontrar pontos em comum e formas de conviver com a dissonância.
Meu desejo de ser o compasso da vida de todos, marcando o ritmo com base na batida do meu coração, finge ser democrático quando apenas devoro diferenças, sumo com elas nesta busca de pontos em comum. É mais forte em mim buscar relações apenas com base na semelhança, no que há de comum, quando o mais desafiador é lidar com os dois, como a semelhança e a diferença em relação a mim. É mais prazeroso descobrir no outro apenas o que há de semelhante em relação a mim e sumir, fingir que não existe, suprimir as diferenças e as divergências.
A vida não é assim. Nem todos estarão lá no mesmo momento e da mesma maneira. Sei que o desafio é o relacionamento que combina a convergência com a dissonância, ora lidando com o que há de comum e com o que há de diferente. A paz não é ausência de guerra, de conflito, de violência, mas presença de justiça, de diálogo, de convivência, de tolerância, de busca por espaço para a minha expressão sem sumir e sem desaparecer com a expressão dos outros.
Tarefa difícil para quem tende a querer unidade de pensamento, sentimento e ação como um todo homogêneo e nada plural. A pluralidade parece inimiga do desenvolvimento, desafia, provoca, atrapalha, mas ela é a própria base do desenvolvimento humano. É que me ensinaram a desejar a homogeneidade e eu, pelo jeito, gostei.
Luto firmemente para que a paz mundial seja possível, mas luto antes de tudo contra essa ideia que insiste em viver dentro de mim desejando que tudo pare ou tudo siga conforme meus humores. Se me ensinaram a homogeneizar como se fosse uma sina da minha biologia humana, posso aprender a pluralizar, a conviver nas diferenças e semelhanças, numa harmonia que está centrada na diversidade e não nesta falsa unidade. Parece que o ensinamento perverso não é tão antigo assim e dá para reverter a tempo de ser feliz. Parece que tudo no meu corpo também colabora para compreender a diversidade como fonte de desenvolvimento e não de atrofia e derrota.
A nossa história diz isso. Chegamos aqui porque há diversidade e não essa paz falsificada, vendida como ausência de barulho, conflitos, divergências. Sobrevivemos porque soubemos cooperar na diferença, não porque tentamos exterminar a diferença. Até tentamos, mas jamais foi possível. A vida não deixa. No dia em que deixar, não haverá mais vida.
Não temos regras? Vale-tudo neste mundo plural? Nunca! Não chegaremos a lugar algum sem parâmetros, agendas, compromissos, combinações que nos façam, antes de tudo, garantir a pluralidade. Que combinação alguma nos faça menos tolerantes com a verdade alheia e que pluralidade alguma nos deixe sem rumo neste maravilho mar de conflitos. Assim, tento viver convivendo, sendo firme e ao mesmo tempo aberto a novas possibilidades.
Sobretudo, tento resgatar o valor da tolerância porque nem tudo vai mudar, nem todos serão como eu quero, nem todos vão estar lá no mesmo momento e do mesmo jeito. Tolerância é exigência de um mundo com mais de sete bilhões de pessoas singulares, únicas e ao mesmo tempo plurais, coletivas, compartilhando diferenças e semelhanças sobre a mesma Terra na qual respiramos para viver e para sermos felizes, seja lá o que isso queira dizer em cada tempo e lugar.
E por falar em tolerância, neste Dia Mundial da Paz, da ONU, cabe lembrar um de seus mais belos documentos:
Declaração proclamada e assinada em 16 de novembro de 1995 pelos Estados Membros da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, reunidos em Paris em virtude da 28ª reunião da Conferência Geral, de 25 de outubro a 16 de novembro de 1995.
Artigo primeiro da Declaração de Princípios sobre a Tolerância
1.1 A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.
1.2 A tolerância não é concessão, condescendência, indulgência. A tolerância é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos universais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro. Em nenhum caso a tolerância poderia ser invocada para justificar lesões a esses valores fundamentais. A tolerância deve ser praticada por indivíduos, pelos grupos e pelo Estado.
1.3 A tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito. Implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos.
1.4. Em consonância ao respeito dos direitos humanos, praticar a tolerância não significa tolerar a injustiça social, nem renunciar às próprias convicções, nem fazer concessões a respeito. A prática da tolerância significa que toda pessoa tem a livre escolha de suas convicções e aceita que o outro desfrute da mesma liberdade. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são. Significa também que ninguém deve impor suas opiniões a outrem.

Disse Gandhi que não há caminho para a paz, a paz é o caminho. Disse tudo.